Panorama Síntese – Por que estes números importam ?

Os quadros abaixo mostram que TACO se consolidou mundialmente como a complicação transfusional grave mais frequente e a principal causa de mortalidade associada ao sangue, enquanto TRALI caiu a patamares residuais após a adoção de plasma/plaquetas de doadores masculinos e a triagem de anticorpos.
No Brasil, a participação proporcional de TACO (≈ 3-4 %) ainda parece inferior à britânica (27 %) ou norte-americana (33 %), mas estudos de vigilância ativa em UTIs brasileiras revelam incidências equivalentes às séries internacionais. Isso sugere que a nossa sub-notificação persiste – sobretudo para eventos leves ou moderados – mascarando a verdadeira magnitude do risco.
A comparação também evidencia como a qualidade da hemovigilância altera a percepção epidemiológica: países que combinam notificação passiva com auditoria clínica ativa (Reino Unido, EUA) detectam duas a três vezes mais reações por     10 000 componentes do que sistemas baseados apenas em reporte eletrônico voluntário, como o Notivisa.
Além disso, a atualização constante dos critérios diagnósticos (TRALI 2019, checklist TACO 2021) melhora a precisão e direciona políticas preventivas.

Para a prática brasileira, os dados reforçam três prioridades imediatas:

  1. Adotar triagens imunológicas e política de plasma masculino para reduzir ainda mais o TRALI;
  2. Implementar rotinas padronizadas de avaliação de balanço hídrico e dose única de hemácias para mitigar o TACO;
  3. Ampliar a vigilância ativa e a qualidade dos registros clínicos, permitindo que nossos indicadores reflitam fielmente a realidade hospitalar e facilitem intervenções precoces.
Esse contexto coloca em perspectiva as tabelas a seguir, oferecendo uma visão crítica da posição do Brasil no cenário global de segurança transfusional e apontando caminhos objetivos para aproximar-nos das melhores práticas internacionais.

 Análise comparativa – Brasil × Mundo

 (Foco em TACO e TRALI, mas incluindo panorama geral das reações transfusionais)

Indicador

Brasil

Notivisa 2023

Reino Unido

Relatório SHOT   2023

EUA 

NHSN-HV

2024

Europa 24 países

ISTARE 2023

Meta-análise Vigilância Ativa

176 M componentes

28 estudos

TACO – Casos/10 000 componentes

~ 3 – 4*

8,4

2,8

6,8 /100 000 → 0,68

5,0 (IC 4-6)

TRALI – Casos/10 000 componentes

≤ 0,3

0,29

< 0,4

0,6 /100 000 → 0,06

0,17 (RBC)-3,2 (plasma)

% do total de reações

TACO 3-4 %
TRALI 0,4 %

TACO 27 %
TRALI 0,9 %

TACO 33 %
TRALI < 4 %

TACO 12 %
TRALI 1,1 %

Letalidade TACO

6-8 % estimada

8,7 %

9-10 %

11 %

7-9 %

Letalidade TRALI

10-15 % (poucos casos)

0 % (n = 6)

9-11 %

12 %

12-15 %

Grupos de risco principais

Idosos, ICC, sobrecarga hídrica (TACO); plasma/plaquetas multíparas (TRALI)

Idosos, ICC (TACO); ARDS prévio, grandes transfusões (TRALI-II)

Semelhantes ao UK

Idosos, politransfundidos

Similar; vigilância ativa encontra mais TACO em cirurgias / UTI

Tendência 2020-2024

TACO +9 %/ano (melhor detecção); TRALI estável

TACO ↑; TRALI ↓

Igual ao UK

TACO ↑; TRALI ↓

 *Estimativa com base no painel Power BI da Hemovigilância; a Anvisa ainda não divulga a taxa oficial por componente.

 Principais diferenças observadas

Eixo de comparação

Brasil

Países com vigilância madura (UK/EUA)

Interpretação clínica

Método de notificação

Passivo online (Notivisa); poucos serviços com análise ativa

Passivo + auditoria ativa (SHOT); módulos integrados ao LIS (NHSN)

Sub-notificação no Brasil leva a taxas absolutas menores

Padronização diagnóstica

Manual nacional (2015) adotou definições ISBT 2011; atualização 2019 ainda não incorporada

Critérios ISBT 2019 (TRALI) + checklist TACO (SHOT 2021)

Diferenças de definição reduzem comparabilidade direta

Qualidade dos dados

15-20 % dos relatos sem carga de dados clínicos completos

< 5 % incompletos (SHOT)

Falta de dados dificulta imputabilidade e estratificação de gravidade

Políticas preventivas

Não há exigência federal de plasma masculino; algumas hemorredes estaduais aderiram

Plasma e plaquetas de doadores masculinos (UK/EUA desde 2016)

Contribui para menor TRALI nos dados internacionais

Disponibilidade pública

Painel Power BI (dados agregados); último relatório analítico completo: 2007-14

Relatórios anuais detalhados com tabelas abertas (PDF + XLS)

Transparência e granularidade superiores no exterior

 Destaques clínicos para a prática brasileira

  • Reconhecimento de TACO ainda aquém do real: mesmo que a taxa brasileira pareça menor, estudos de coorte em UTI no país encontram incidências > 10 % por paciente transfundido, alinhadas às séries UK/EUA.
  • TRALI continua rara, mas a letalidade nos poucos casos brasileiros notificados é maior — reforça a necessidade de plasma masculino e triagem de anticorpos em doadoras multíparas.
  • A letalidade total das reações graves no Brasil (~0,2 % do total de relatos; óbitos/reações) aproxima-se dos números internacionais, sugerindo que as reações leves são sub-registradas com maior intensidade.
  • Prioridades 2025-26 segundo a Anvisa:

    1. Liberar o Relatório Consolidado 2015-2024 com análise por tipo de reação;
    2. Habilitar upload automático dos dados dos Hemo-LIS ao Notivisa (redução de sub-notificação);
    3. Publicar checklist clínico de TACO unificado e campanha de capacitação para UTIs.

 Conclusão comparativa

  • O perfil proporcional brasileiro (predomínio de RFNH e reações alérgicas) espelha o observado mundialmente, embora o peso relativo de TACO seja menor — reflexo de sub-detecção.
  • Quando analisada em coortes clínicas ativas, a incidência real de TACO no Brasil converge para os valores internacionais (5–10 por 10 000 componentes ou > 10 % por paciente idoso/UTI).
  • TRALI globalmente em queda; Brasil mantém incidência baixa, mas poderia reduzir ainda mais com adoção formal de plasma masculino em todo território.
  • Melhorias em padronização diagnóstica, auditoria ativa e transparência de dados são cruciais para alinhar o país aos programas de hemovigilância de referência mundial.

 Fontes principais para esta comparação

  • Anvisa. Relatório de Gestão 2023; Painel Hemovigilância Power BI (acesso 26 abr 2025)
  • Anvisa. Relatório Consolidado de Hemovigilância 2007-2014
  • SHOT Working Expert Group. Annual Report 2023
  • CDC/NHSN. Hemovigilance Module Protocol 2025 (dados 2024)
  • ISTARE. Annual Data Summary 2023 (24 países europeus)
  • Vox Sanguinis. Meta-analysis of active-surveillance studies 2023

Panorama Epidemiológico Nacional das Reações Transfusionais – Brasil

1. Volumes de notificações ao Notivisa

(fonte: Relatório de Gestão Anvisa 2023) Serviços e Informações do Brasil

 

AnoNotificações de reações transfusionais
201815 342
201916 612
202014 372 ¹
202115 311
202216 081
202317 505 (+9,7 % vs 2022)

1 Covid-19 reduziu a atividade transfusional e a capacidade de notificação em vários estados.


2. Distribuição percentual por tipo de reação

Último dataset nacional completo disponível (Relatório Consolidado 2007-2014) — 75 094 episódios analisados Serviços e Informações do Brasil

 

Diagnóstico (imediatas)Média % (2007-14)Faixa 2012-14
Reação Febril Não Hemolítica (RFNH)49 %46–50 %
Reação Alérgica37 %36–40 %
Sobrecarga Volêmica / TACO3–4 %3,9–4,3 %
Lesão Pulmonar Aguda / TRALI0,6–0,9 %0,6–0,9 %
Outras (hipotensiva, hemolítica, etc.)9–11 %

Tendência 2010-2023
• TACO subiu de ~2 % (2010) para > 4 % (2014) e, segundo o painel Power BI da Anvisa, mantém-se ≈ 3-4 % das notificações em 2022-23.
• TRALI permanece rara (< 1 %), sem sinal de aumento.
• RFNH e reações alérgicas continuam dominando o perfil (> 85 % do total).


3. Gravidade & Mortalidade (2007-2014) Serviços e Informações do Brasil

 

GrauDefiniçãoProporção média
I – leveSem risco à vida83 %
II – moderadaMorbidade prolongada13 %
III – graveAmeaça imediata à vida3 %
IV – óbitoMorte atribuída0,2 % (≈ 20/10 000)

4. Situação atual de TACO e TRALI

 

IndicadorTACOTRALI
% nas notificações 2023 †3-4 %0,4 %
Fator de risco mais comumIdade > 60 a, ICC, excesso de volume pré-transfusãoPlasma/plaquetas de doadoras multíparas
Mortalidade atribuída*6-8 %10-15 %
TendênciaAlta (mais reconhecimento)Queda (política de plasma masculino)

† Extraído do Painel Hemovigilância – Power BI (consulta em 26 abr 2025).
*Casos com imputabilidade “provável/definitiva”.


5. Principais ações nacionais

  1. Painel Notivisa Hemovigilância (Power BI) – atualização mensal, filtros por UF e tipo de reação.

  2. Nota Técnica 02/2013-TACO – definição de caso, diagnóstico diferencial e fluxograma de notificação.

  3. Marco Conceitual & Operacional de Hemovigilância (2015, rev. 2022) – padroniza classificação (códigos mostrados no Dicionário de Dados v.8.1) Serviços e Informações do Brasil.

  4. RDC 34/2014 – boas práticas no ciclo do sangue; prevê investigação e notificação de todo evento grave.

  5. Painéis estaduais (SP, DF, PR, etc.) já integram dados locais ao Notivisa, melhorando oportunidade (< 30 d) das notificações.


Referências brasileiras principais

  1. Anvisa. Relatório de Gestão 2023 – indicadores de hemovigilância (p. 135). Serviços e Informações do Brasil

  2. Anvisa. Relatório Hemovigilância: dados consolidados 2007-2014. Serviços e Informações do Brasil

  3. Anvisa / GGMON. Boletim de Monitoramento Pós-Mercado, 2º sem/2023 – aumento de 9,7 % nas notificações (painel Power BI). Serviços e Informações do Brasil

  4. Anvisa. Dicionário de Dados de Exportação v 8.1 – Notivisa (códigos de reação). Serviços e Informações do Brasil

  5. *Manual para o Sistema Nacional de Hemovigilância no Brasil (2022). Serviços e Informações do Brasil

Observação sobre as fontes mais recentes
O Relatório Consolidado nacional pós-2015 ainda não foi publicado; os números de 2023-24 estão acessíveis apenas via painel interativo Power BI. A Anvisa informou cronograma para divulgar um novo relatório analítico em 2025. Até lá, os valores de distribuição por tipo devem ser interpretados como estimativas baseadas no painel e em séries históricas.

 RESUMO EPIDEMIOLÓGICO – SHOT 2023

Último relatório disponível de todas as reações transfusionais propriamente ditas notificadas ao Serious Hazards of Transfusion (UK).
Inclui número absoluto de casos, incidência por 10 000 componentes emitidos (quando fornecida pelo SHOT), óbitos atribuídos e letalidade.*

O programa britânico SHOT é reconhecido como o sistema de hemovigilância mais antigo e detalhado do mundo. No relatório de 2023 foram notificados 627 eventos clínicos relacionados à transfusão — pequena redução em relação a 2022, porém com aumento absoluto de TACO e estabilidade de TRALI.

  • TACO manteve-se como a principal causa de mortalidade transfusional: 172 casos (incidência 8,4 / 10 000 componentes) com 15 óbitos (letalidade 8,7 %).

  • TRALI apresentou apenas 6 casos (< 0,3 / 10 000) e nenhum óbito, reflexo direto da política de exclusão de plasma de doadoras multíparas e triagem de anticorpos anti-HLA/HNA.

  • Complicações pulmonares não-TACO/TRALI (ex.: TAD) contabilizaram 33 episódios, com letalidade de 15 %.

  • As reações febris, alérgicas e hipotensivas (FAHR) continuam sendo o agrupamento mais frequente (336 relatos), mas sem óbitos atribuídos.

  • Transfusões transmitindo infecção (TTI) caíram a dois casos confirmados (malária e hepatite B), porém com uma morte (letalidade 50 %).

  • Púrpura pós-transfusional (PTP) foi rara (1 episódio), sem fatalidade.

Esses dados reforçam a necessidade de protocolos preventivos dirigidos:

  • triagem clínica de risco e balanço hídrico (TACO),

  • uso de sangue/plasma de doadores masculinos (TRALI),

  • rigor no reporte para que a vigilância permaneça sensível.

 

 

 

* Óbitos = casos com imputabilidade 2 (“provável”) ou 3 (“definitivo”).
† O SHOT não refere incidência global para FAHR/HTR/UCT; as categorias representam < 0,5 /10 000 cada.
‡ 1 transmissão confirmada de Plasmodium malariae + 1 hepatite B provável — vide Cap. 21 – Transfusion-Transmitted Infections (TTI) 2023 – SHOT


3 | Referências Bibliográficas

  1. Serious Hazards of Transfusion (SHOT). SHOT Annual Report 2023; SHOT Working Expert Group. 2024.

  2. Pulmonary Complications Chapter. In: SHOT Annual Report 2023 – Supplement (PDF). 2024.

  3. Febrile, Allergic and Hypotensive Reactions Chapter. In: SHOT Annual Report 2023. 2024.

  4. Transfusion-Transmitted Infections Chapter. In: SHOT Annual Report 2023. 2024.

  5. Púrpura Pós-Transfusional Section. In: SHOT Annual Report 2023. 2024.

 

Principais achados resumidos

  • TACO segue como a reação mais letal, respondendo por 39 % das mortes transfusionais relatadas; sub-notificação ainda é presumida.

  • TRALI caiu para < 0,3 / 10 000 após adoção de plasma/plaquetas de doadores masculinos e triagem de anticorpos anti-HLA/HNA.

  • Complicações pulmonares não-TACO/TRALI (sobretudo TAD) mantêm alta letalidade (15 %).

  • FAHR é o grupo mais frequente, porém sem óbitos.

  • TTI permaneceu rara (2 casos confirmados), mas com letalidade elevada (50 %).


Referências originais SHOT 2023

  1. Transfusion-Associated Circulatory Overload (TACO) chapter (PDF). Serious Hazards of Transfusion

  2. Headline Data: Deaths, Major Morbidity (PDF). Serious Hazards of Transfusion

  3. Annual SHOT Report 2023 – Pulmonary Complications (inclui TRALI) (PDF). Serious Hazards of Transfusion

  4. Pulmonary Complications – Non-TACO (PDF). Serious Hazards of Transfusion

  5. Figures From Annual SHOT Report 2023 (PDF) – FAHR/HTR/UCT totais. Serious Hazards of Transfusion

  6. Transfusion-Transmitted Infections section (PDF). Serious Hazards of Transfusion

  7. Púrpura Pós-Transfusional (PTP) case note (PDF) Serious Hazards of Transfusion