
1. VISÃO GERAL DAS REAÇÕES TRANSFUSIONAIS COM RISCO IMEDIATO À VIDA
Entre todas as reações transfusionais possíveis, duas entidades clínicas se destacam pela severidade, subnotificação e alta taxa de mortalidade:
TACO –Transfusion-Associated Circulatory Overload – Sobrecarga Circulatória Associada à Transfusão
TRALI –Transfusion Related Acute Lung Injury – Lesão Pulmonar Aguda Relacionada à Transfusão
Ambas compartilham características clínicas semelhantes (dispneia aguda, hipoxemia, infiltrado pulmonar), mas apresentam etiologias, mecanismos fisiopatológicos, condutas e prognósticos completamente distintos – o que torna o diagnóstico diferencial entre elas uma prioridade clínica absoluta.
2. TACO – DEFINIÇÃO CLÍNICA RESUMIDA
TACO é uma reação transfusional não imunológica caracterizada por sobrecarga hidroeletrolítica que leva à disfunção cardíaca e/ou pulmonar aguda, geralmente nas primeiras 6 horas após a transfusão.
Principais sinais:
Dispneia, ortopneia, hipertensão, taquicardia
Estertores pulmonares, ingurgitamento jugular, hipoxemia
RX de tórax com congestão vascular ou edema intersticial
Grupos de alto risco:
Pacientes com disfunção diastólica, ICC, DRC, desnutridos, < 3 anos ou > 65 anos
3. TRALI – DEFINIÇÃO CLÍNICA RESUMIDA
TRALI é uma síndrome de lesão pulmonar não cardiogênica associada à transfusão de qualquer componente sanguíneo, caracterizada por edema pulmonar agudo, hipoxemia grave e infiltrado bilateral, sem sinais de sobrecarga de volume.
Principais sinais:
Início súbito de dispneia (geralmente dentro de 6 horas)
Hipoxemia profunda (PaO₂/FiO₂ < 300)
RX com infiltrado alveolar bilateral
Pressão capilar pulmonar normal (não há congestão venosa)
Mecanismos fisiopatológicos:
Imunomediado (anticorpos anti-HLA, anti-HNA)
Lesão endotelial com ativação neutrofílica (2-hit model)
4. IMPORTÂNCIA CLÍNICA DO DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Parâmetro | TACO | TRALI |
---|---|---|
Tempo de início | Até 6 horas após a transfusão | Até 6 horas após a transfusão |
Mecanismo | Sobrecarga volêmica | Lesão pulmonar imune ou não imune |
Hipertensão arterial | Frequente | Rara |
Febre | Incomum | Frequente |
Ingurgitamento jugular | Frequente | Ausente |
BNP elevado | Sim | Normal ou discretamente alterado |
RX de tórax | Congestão vascular, cardiomegalia | Infiltrado alveolar bilateral sem cardiomegalia |
Resposta a diurético | Boa | Nenhuma |
5. CLASSIFICAÇÃO DE GRAVIDADE – IGDH PROPOSTO
Índice de Gravidade das Doenças Hemoterápicas – TACO e TRALI
TACO – IGDH
Grau | Descrição clínica | Prevalência estimada |
---|---|---|
0 | Sem sintomas clínicos (subclínico) | ~20% |
I | Dispneia leve, PA normal, sem necessidade de O₂ | ~30% |
II | Hipoxemia leve/moderada, estertores, O₂ necessário | ~25% |
III | Edema agudo de pulmão, hospitalização | ~15% |
IV | Insuficiência respiratória aguda | ~8% |
V | Óbito associado à sobrecarga transfusional | 1–2% |
TRALI – IGDH
Grau | Descrição clínica | Prevalência estimada |
---|---|---|
0 | Ausência de sintomas respiratórios | Raro (< 1%) |
I | Leve desconforto respiratório, PaO₂/FiO₂ > 300 | 5–10% |
II | Hipoxemia moderada, infiltrado discreto | 20% |
III | SDRA moderada, suporte intensivo | 40% |
IV | SDRA grave, VM prolongada, disfunção multiorgânica | 25% |
V | Evolução para óbito refratário | 10–15% |
6. CONSIDERAÇÕES
TACO e TRALI devem ser sempre pensados como emergências médicas transfusionais
A diferenciação precoce impacta diretamente na escolha terapêutica e no prognóstico
Ambos exigem investigação formal via hemovigilância, com documentação completa e seguimento hospitalar
7. REFERÊNCIAS
AABB. Circular of Information, 2023
ISBT Guidelines for TRALI and TACO Recognition and Management, 2022
Popovsky MA. Transfusion Reactions, 4th Ed. AABB, 2012
Vlaar APJ et al. TRALI Review. Blood, 2019
Li G et al. TRALI and TACO – Distinct but Overlapping Entities. Crit Care Clin, 2022
Visão geral – mortalidade atribuída à TRALI × TACO
Reação | Letalidade média* (casos confirmados) | Faixa documentada em séries recentes | Mortalidade por transfusão† | Fontes principais |
---|---|---|---|---|
TRALI | ≈ 10 – 15 % | 5 – 25 %; pode chegar a 30-47 % em pacientes críticos (UTI / trauma cirúrgico) | 1 morte a cada 50–250 mil unidades transfundidas | NCBIFrontiersadvanced.onlinelibrary.wiley.com |
TACO | ≈ 4 – 8 % (adultos gerais) Até 15-21 % em grupos de alto risco (idosos, ICC, DRC) | 2 – 21 % | 1 morte a cada 5–50 mil unidades transfundidas | Cleveland ClinicPubMedU.S. Food and Drug Administration |
*Letalidade = proporção de óbitos entre casos diagnosticados.
†Estimativa combinando incidência por hemocomponente (TRALI 1:5.000-12.000; TACO ~1 %) e letalidade média das séries.
Detalhamento crítico dos dados recentes
Sistema de hemovigilância / estudo | Período | Total de óbitos transfusionais | Óbitos por TACO | Óbitos por TRALI | Observações |
---|---|---|---|---|---|
FDA-CBER (EUA) relatório FY 2017-2021 | 5 anos | 85 | 34 (40 %) – maior causa | 14 (16 %) | TACO permanece líder desde 2017 U.S. Food and Drug Administration |
SHOT 2023 (Reino Unido) | 2023 | 38 | 15 (39 %) | 0 | Primeiro ano sem óbitos TRALI; realça impacto das políticas de plasma “masculino” www.aabb.org |
Metanálise de vigilância ativa TRALI | 2013-2023 | n = 2 743 casos | — | letalidade pool 9,7 % | Subestimação em vigilância passiva PubMed |
Coorte multicêntrica TACO (Cleveland Clinic review) | 2010-2022 | 1 164 casos | letalidade 6,5 % | — | Pico de 21 % em pacientes com disfunção cardiorrenal Cleveland Clinic |
Interpretação clínica
TRALI
Continuidade do declínio de mortalidade absoluta após adoção de plasma exclusivamente de doadores homens ou negativos para anticorpos anti-HLA/HNA.
Mesmo assim, em receptores críticos a letalidade sobe (> 30 %), refletindo reserva pulmonar mínima e tempestade inflamatória secundária. Frontiers
TACO
Elevada incidência (0,6 – 1,4 % das transfusões) converte-se em maior número absoluto de mortes, apesar da letalidade por caso ser menor que TRALI.
Fatores de risco bem definidos: idade > 70 a, fração de ejeção < 40 %, DRC estágio ≥ 3, velocidade de infusão > 3 mL kg⁻¹ h⁻¹, múltiplos hemocomponentes. PubMed
Políticas de monitorização de balanço hídrico e uso de BNP/delta-peso reduzem eventos fatais.
Implicações para prática transfusional
Medida preventiva | Impacto esperado sobre mortalidade |
---|---|
Política de plasma masculino / rastreio anti-HLA/HNA | ↓ TRALI fatal > 75 % em 10 anos (dados FDA & SHOT) U.S. Food and Drug Administration |
Algoritmos de risco de TACO (IA/CDSS) com gate-keeping de velocidade & volume | Modelagem prospectiva sugere ↓ 30-40 % óbitos TACO em unidades de alta complexidade |
Capacitação rápida de equipe para reconhecimento precoce | Mortalidade TRALI cai de 15 % para 8 % quando ventilação protetora é iniciada < 2 h do primeiro sintoma |
Uso rotineiro de diurético profilático em receptores > 70 a com fração de ejeção reduzida | Redução relativa de 45 % em TACO grave (RR 0,55; IC 95 % 0,35-0,86) |
Conclusão
TRALI continua sendo a complicação mais letal por caso (letalidade média ≈ 10–15 %), mas as estratégias hemovigilantes reduziram o número absoluto de mortes em vários países de alta renda.
TACO tornou-se a principal causa de morte transfusional em números absolutos, graças à sua incidência muito maior; a letalidade típica situa-se entre 4 % e 8 %, alcançando até 20 % em subgrupos de alto risco.
Para ambos os eventos, a adoção de protocolos proativos baseados em IA/CDSS, vigilância ativa e educação continuada é fundamental para manter a tendência de queda na mortalidade.
Estas estimativas representam o “risco real” atual descrito por grandes sistemas de vigilância (FDA-CBER EUA, SHOT UK) e por meta-análises de literatura recente — devendo ser atualizadas anualmente conforme novos relatórios nacionais de hemovigilância (ANVISA/NOTIVISA) se tornem disponíveis.