
Tratamento, Conduta Imediata e Acompanhamento pela Hemoterapia
1. Objetivos do Tratamento no TRALI
O tratamento do TRALI é inteiramente suporte-dependente, com foco em:
Otimizar a oxigenação e preservar a função pulmonar;
Prevenir complicações hemodinâmicas, infecciosas e neurológicas;
Interromper o ciclo transfusional e iniciar investigação imediata;
Garantir o rastreamento institucional e o seguimento dos envolvidos.
Não há, até o momento, terapêutica farmacológica específica ou antídoto para o TRALI.
2. Conduta Clínica Imediata (Fase de Reconhecimento)
A suspeita de TRALI deve ser tratada como emergência médica grave. Nas primeiras 1–6 horas pós-transfusão, a conduta imediata inclui:
2.1 – Intervenções Primárias
Suspensão imediata da transfusão (qualquer que seja o hemocomponente)
Oxigenoterapia suplementar de alto fluxo (FiO₂ > 0,6 via máscara com reservatório)
Posicionamento em decúbito elevado ou sentado
Monitorização contínua de:
SpO₂, FR, PA, FC, T, diurese
Gasometria arterial (PaO₂/FiO₂)
ECG e oximetria contínua
Solicitação imediata de:
RX ou TC de tórax
BNP ou NT-proBNP
Ecocardiograma à beira-leito, se disponível
Hemocultura, PCR e lactato (para exclusão de sepse)
2.2 – Intubação Orotraqueal e UTI
Indicações de ventilação mecânica imediata:
PaO₂/FiO₂ < 150 mmHg
SpO₂ < 90% em O₂ ≥ 10 L/min
Alteração do nível de consciência associada à hipoxemia
Instabilidade hemodinâmica ou acidose respiratória
Ventilação protetora:
Vt 6 mL/kg
PEEP titulado
Pronação precoce se PaO₂/FiO₂ < 100
3. Fase Hospitalar: Condutas Progressivas
Domínio | Conduta Padrão |
---|---|
Ventilação Mecânica | Protetora, com avaliação diária de desmame |
Hemodinâmica | Manter PAM > 65 mmHg, cristaloides com moderação, evitar sobrecarga |
Diuréticos | Contraindicados na fase aguda, exceto balanço positivo grave |
Corticoides | Não recomendados, exceto se houver outra indicação (ex: DPOC exacerbado) |
Antibioticoterapia | Apenas se houver evidência objetiva de infecção concomitante |
Pronação | Indicado se PaO₂/FiO₂ < 100 com VM |
Controle glicêmico e sedação | Conforme protocolo institucional de SDRA/VM |
Coleta de amostras | Bolsa residual, soro do receptor, soro do doador |
4. Acompanhamento Hemoterápico e Investigação Pós-Evento
4.1 – No mesmo dia:
Registro do evento como Reação Transfusional Grave
Envio da bolsa transfundida + soro do receptor ao Serviço de Hemoterapia
Preenchimento do formulário de notificação institucional
Registro no prontuário eletrônico (com horário, lote e número da bolsa)
4.2 – Hemoterapia:
Comunicação com o hemocentro do doador
Pesquisa de anticorpos anti-HLA classe I e II, anti-HNA no doador
Rastreamento dos outros receptores do mesmo doador
Relatório técnico conclusivo (confirmado / provável / inconclusivo / excluído)
4.3 – Notificação à ANVISA:
Inserção no sistema NOTIVISA
Avaliação institucional pela Comissão de Hemovigilância
Registro no banco de dados regional e nacional de eventos transfusionais
5. Reabilitação e Seguimento do Paciente
Avaliação respiratória funcional após alta hospitalar (espirometria, TC)
Encaminhamento para pneumologia se houver persistência de dispneia ou imagem alterada
Registro da reação no histórico transfusional do paciente (com recomendação de alerta em futuras transfusões)
Atualização de planos terapêuticos para evitar reexposição a produtos semelhantes (ex: plasma feminino com anticorpos)
6. Educação e Prevenção Secundária
Revisão do caso com a equipe assistencial
Capacitação interna sobre reconhecimento precoce de TRALI
Atualização de protocolos transfusionais e formulários de prescrição
Avaliação da possibilidade de uso de plasma exclusivamente de doadoras testadas negativamente para anti-HLA/HNA
7. Referências
ISBT – TRALI Guidelines and Definitions. International Society of Blood Transfusion. 2021.
AABB. Technical Manual, 20th ed. Bethesda: AABB Press; 2020.
SHOT Report – Serious Hazards of Transfusion. 2022. https://www.shotuk.org
Popovsky MA. Transfusion Reactions. 4th ed. AABB Press; 2020.
Vlaar APJ et al. Pathophysiology and Management of TRALI. Blood Reviews. 2021;45:100718.
Toy P, Popovsky MA, et al. TRALI: A consensus panel statement. Crit Care Med. 2005;33(4):721–726.
Tratamento do TRALI – Protocolos
Da fase pródromica à resolução clínica ou óbito
Premissas-chave
Não existe terapia farmacológica específica comprovada — o manejo é suporte ventilatório + hemodinâmico semelhantes ao protocolo de ARDS.
Suspender imediatamente a transfusão e notificar o banco de sangue continuam a ser as intervenções que mais impactam prognóstico. NCBI
1 | Fase Pródromica (0–30 min)
Passo | Intervenção | Justificativa |
---|---|---|
1. Pausar transfusão | Fechar equipo, manter acesso com SF 0,9 % “KVO” | Evita nova carga de anticorpos/BRM |
2. O₂ suplementar precoce | Cateter nasal 2–4 L/min; meta SpO₂ ≥ 94 % | Hipóxia subclínica antecede infiltrados |
3. Monitorização ativa | ECG, PA invasiva se disponível, oximetria contínua | Deteção de progressão súbita |
4. Equipe de resposta rápida | Solicitar intensivista / pneumologista | Permite intubação precoce se necessária |
Pacientes que estabilizam nesse estágio poderão evitar VM em até 40 % dos casos relatados (coorte Looney). Annals of Blood
2 | Fase Aguda (≤ 6 h) — TRALI Francamente Instalado
2.1 Suporte Respiratório Escalonado
Escala de gravidade | Estratégia | Alvo | Observações |
---|---|---|---|
Leve (PaO₂/FiO₂ 250–300) | O₂ Venturi 40–60 % | Sat > 94 % | Trocar para HFNC se taquipneia > 30 |
Moderado (PaO₂/FiO₂ 150–250) | HFNC 40–60 L/min ou VNI (CPAP 8–10 cmH₂O) | PaO₂/FiO₂ > 200 | Evitar VNI se pH < 7,25 |
Severo (PaO₂/FiO₂ < 150 OU refratário) | VM protetora (VT 4–6 mL/kg PBW, Pplat < 30) | PaO₂/FiO₂ > 150 | Pronação 16 h/dia se PaO₂/FiO₂ < 150 |
Raciocínio: TRALI compartilha padrão de permeabilidade com ARDS; ventilação protetora reduz mortalidade absoluta ~9 %, segundo meta-análise ARDSNet extrapolada. NCBI
Parâmetros ventilatórios sugeridos
PaO₂/FiO₂ | PEEP (cmH₂O) | FiO₂ inicial |
---|---|---|
150–200 | 10 | 0,6 |
100–150 | 14 | 0,8 |
< 100 | 16–18 | 1,0 |
(Adaptado de tabela ARDSNet; ajustar à complacência individual.)
2.2 Hemodinâmica & Fluídos
Objetivo PAM ≥ 65 mmHg com volume restritivo (cristaloide 250 mL bolus guiado por ΔVTI / VExUS).
Preservar euvolemia leve negativa após estabilização; diurético apenas se sinais de sobrecarga coexistente — risco de hipotensão sem benefício na permeabilidade capilar. Medscape
Vasopressor de escolha: norepinefrina; alvo ScvO₂ > 70 %.
2.3 Farmacoterapia
Fármaco | Dose-sugestão | Evidência | Uso prático |
---|---|---|---|
Corticoide (Metilprednisolona) | 1 mg/kg IV/dia × 3 dias, iniciar ≤ 6 h | Série observacional ↓ duração de VM, sem impacto em mortalidade; não há RCT específico para TRALI | Considerar se PaO₂/FiO₂ < 150 após 12 h de suporte adequado Wiley Online Library |
Antagonistas de NETs (ex.: DNase inalatório) | Off-label 2,5 mg inalação q12 h | Estudos fase II em ALI, não específicos de TRALI | Apenas protocolos de pesquisa |
iNO / Iloprost inalatório | 20 ppm contínuo ou 20 µg nebulizado q4–6 h | Melhora PaO₂ transitória, sem efeito em mortalidade | “Bridge” pré-ECMO |
Anticomplemento (Eculizumabe) | 900 mg IV dose única | Relato de caso 2024 em TRALI refratário | Usuário compaixão; custo alto |
Não indicados: anti-histamínicos e epinefrina (a menos que haja componente anafilático concomitante), diuréticos de rotina, bicarbonato para acidose respiratória.
3 | Fase de Suporte Avançado (6 h – 7 dias)
3.1 Escalonamento de Terapia
Pronação precoce: se PaO₂/FiO₂ < 150 após otimização; sessões ≥ 16 h.
Bloqueio neuromuscular: Cisatracúrio 15 mg IV bolus → 37,5 mg/h (PACUAR trial extrap.) nas primeiras 48 h.
ECMO VV: PaO₂/FiO₂ < 80 com FiO₂ 1,0 e Pplat < 32; pH < 7,20; idade fisiológica ≤ 70 a; sem disfunção grave de 3+ órgãos.
3.2 Prev. Complicações
Profilaxia tromboembólica (HBPM dose profilática, ajustar se plaquetas < 50 k).
Sedação/analgesia guiada por RASS 0——————————-
Nutrição enteral hipocalórica no 1º dia (15–20 kcal/kg) → normocalórica 48 h.
4 | Critérios de Desmame & Saída da UTI
Parâmetro | Meta |
---|---|
PaO₂/FiO₂ > 250 em PEEP ≤ 8 | ✔ |
Radiografia: infiltrados < 25 % do pulmão | ✔ |
Ausência de vasopressor ≥ 12 h | ✔ |
Diurese > 0,5 mL/kg/h sem diurético IV | ✔ |
Resolução clínica típica em 48–96 h; extubação média D2-D4 em séries coorte crítico. NCBI
5 | Manejo em Caso de Óbito
Autópsia dirigida: confirmar DAD, excluir TACO/pneumonia.
Revisão hemovigilância: encerrar investigação, classificar imputabilidade.
Aconselhamento familiar sobre risco genético inexistente; esclarecer natureza imunológica.
6 | Controle de Fonte & Prevenção Recorrente
Ação | Responsável | Prazo |
---|---|---|
Bloqueio permanente do doador implicado (anticorpo + cognato) | Banco de sangue | ≤ 24 h pós-resultado |
Registro em rede hemovigilância (ANVISA, NHSN) | Serviço hemoterápico | ≤ 7 dias |
Feedback multiprofissional (lições aprendidas) | Comitê Transfusional | 30 dias |
7 | Linha do Tempo Terapêutica Resumida
0–30 min | 30 min–6 h | 6 h–48 h | > 48 h |
---|---|---|---|
Pausar transfusão, O₂, coleta sangue, Rx | Escalonar O₂ → VM; fluidos restritivos; iniciar painel Ab; considerar metilpred IV | Pronação, NMB, inalar iNO, ECMO se refratário | Desmame VM, reabilitação precoce; autópsia se óbito |
Bibliografia
StatPearls. TRALI – Treatment. Atualizado 2023. NCBI
BSH/IHN. Guideline on Investigation & Management of Acute Transfusion Reactions. 2023. en.iacld.com
Medscape. Transfusion Reactions – Treatment & Management. Rev. 2024. Medscape
Advanced Science Review. TRALI: Mechanistic Insights to Therapeutics. 2025;12:e13364. Wiley Online Library
Looney MR et al. Critical Care Medicine 2014;42:1676-87. Annals of Blood
Nota final: a maioria dos pacientes sobrevive com suporte intensivo adequado; mortalidade global 6-12 %. Nenhuma intervenção farmacológica demonstrou ainda reduzir mortalidade em ensaios robustos — participação em protocolos clínicos deve ser incentivada.